O QUE PENSAM SOBRE A SEGURANÇA DA CPTM, De cliente a súdito: o regime da CPTM

7 de Outubro de 2009  
Categoria: Brasil
ESTE TEXTO FOI EXTRAIDO DO BLOG PASSA A PALAVRA

De cliente a súdito: o regime da CPTM


Ao implementar severas medidas de controle,  que tendem a subordinar mentes e corpos dos usuários de seus serviços, a CPTM instituiu um verdadeiro Estado sobre trilhos, onde quem legisla, julga e executa é a própria empresa. Por Ronan
policiaisQuem observa os mecanismos de segurança instalados junto aos trilhos e estações de trem de uma vasta rede sob comando da CPTM – Companhia Paulista de Trens Metropolitanos – dá-se conta de que se montou um verdadeiro micro Estado para gestão do transporte sobre trilhos. São 1,9 milhão de pessoas por dia, 89 estações, que abrangem 22 municípios. O quadro tem que ser entendido comparando-se a situação existente quando não havia a CPTM e a gestão ficava por conta da CBTU – Companhia Brasileira de Trens Urbanos.
A CPTM foi criada em 1992 e, embora existissem seguranças nas estações, boa parte dos usuários desfrutava do transporte sem pagar. O serviço era um horror, com superlotação, em que pessoas eram obrigadas a viajar penduradas nas portas, pelo lado de fora e outras, por dentro, amontoadas como animais. Para se ter idéia, somente em 1996, 29 pessoas morreram ao viajar penduradas e 351 ficaram feridas, além de 9 surfistas [pessoas que andam em cima do trem] mortos. Em muitas estações, como Franco da Rocha, Baltazar Fidelis e pulando-a-estacaooutras mais, havia uma série de buracos e espaços nas grades que permitiam a entrada gratuita. Acabava pagando a passagem somente aquela parcela cujo pudor moral impedia de adentrar livremente. Como os serviços eram muito ruins – atrasos, trens sujos, falta de segurança, falta de estrutura mínima – a população levava diuturnamente uma silenciosa luta que consistia em procurar fazer as viagens sem pagar. Sendo o transporte uma verdadeira tortura, buscava-se ao menos não pagar para ser torturado.
Em situações em que o sofrimento cotidiano extrapolava um dado limite ocorriam revoltas populares, em que a população punha-se a destruir e incendiar trens e estações. Eram corriqueiras, espontâneas, e ocorreram muitas. De memória, a última revolta do tipo quebra-quebra ocorreu em 1997, simultaneamente em várias estações. Geralmente as revoltas ocorriam por conta de alguma morte decorrente de falta de estrutura, como o caso de um jovem que desmaiou, caiu na linha e foi atropelado pelo trem e, principalmente, pelos longos atrasos que colocavam os trabalhadores na situação de terem que aguentar broncas, humilhações e/ou despedimentos de seus patrões por atrasos causados pela empresa de transporte.
Antes da CPTM havia uma ampla liberdade para os usuários. Bem ou mal, a empresa anterior se limitava a oferecer transporte e não se intrometia muito na vida das pessoas, não procurava determinar em detalhes os comportamentos delas dentro da rede. Era o contexto propício para vendedores ambulantes, que foram os astuciosos a descobrirem e implantarem um mercado interno às estações e vagões de trens. Também permitia a atuação livre de evangélicos cantarolando sua fé, pedintes clamando pela solidariedade popular, artistas populares e etc., de forma que fazer uma viagem de trem era oportunidade para se ter contato com uma infinidade de grupos e práticas culturais, além de se poder comprar até peixe. Encontrava-se desde o samba batucado em caixinhas de fósforo ao quase batismo evangélico feito ali mesmo, havia, também, espaço para os conhecidos vagabundos e a estética criminal de matiz popular, ambos minoritários. O último vagão celebrizou-se como lugar de ex-presidiários, criminosos e iniciantes no meio, além de usuários de entorpecentes.
As estações de trem foram, desde sempre, local de militância política, principalmente os arredores. Para além da sabotagem coletiva e pacífica de não pagar passagens e das revoltas populares violentas, em cidades dormitório como Franco da Rocha, Caieiras e muitas outras similares, somente marcando ponto nas estações de trem é que se conseguia e se consegue ter acesso aos trabalhadores, uma vez que a grossa parcela da população utiliza esse transporte para o trabalho. Em períodos de agitação, praticamente não havia dia em que não se encontrava um grupo ou outro panfletando nas estações, discursando com megafones, fazendo abaixo-assinados.
rondas-dentro-do-tremAs mudanças que ocorreram após a saída da CBTU em que assumiu a CPTM acabaram por alterar significativamente esse quadro. A empresa implantou um regime severo para o qual montou todo um aparato policial. São 1,3 mil policiais submetidos diretamente à CPTM, além da polícia civil e militar. Em 2003, instalaram 802 câmeras de TV nas estações comerciais. Adotou-se o uso de cães de ataque – pastor alemão e rottweiller – que são colocados ostensivamente com o interesse de apavorar a população. Criou-se um disque denúncia próprio e campanhas incentivando os usuários a denunciarem o que a CPTM considera infração: ter um skate, por exemplo. Criou-se sistema de treinamento policial próprio, além da rede de quartinhos para espancamento, cárcere privado e torturas.
Com a implantação de empresas privadas de segurança para além da polícia ferroviária, mais o reforço em grades, muros e materiais de segurança, conseguiu-se praticamente eliminar as possibilidades de que qualquer pessoa conseguisse adentrar as estações sem pagar os bilhetes, o que dificultou a vida de toda uma parcela mais precária. O sofrimento permaneceu, mas agora deveria se pagar completamente para ser supliciado. Essa mudança não foi conseguida sem o recurso à brutalidades e foram utilizados intensivamente a tortura, o cárcere privado e espancamentos de usuários que, eventualmente, estivessem tentando entrar na estação sem pagar.
Cenas de seguranças com armas, canos de ferro, correntes, passaram a ser corriqueiras. Impedida a entrada gratuita, iniciaram o combate aos vendedores ambulantes. Para tal, no entanto, não houve polícia que resolvesse sozinha, uma vez que a miserabilidade lança 50 novos jornal1vendedores onde a polícia conseguiu expulsar 10. Assim, a CPTM teve que recorrer ela própria à venda de produtos, abrindo os espaços das estações para lojinhas. Com os usuários comprando das lojinhas oficiais conseguiram diminuir drasticamente o mercado dos vendedores não oficiais, os marreteiros. Para estes, restou somente a possibilidade de vender coisas não ofertadas nas estações, como cervejas, certos salgadinhos e etc., até porque os produtos oferecidos nas lojinhas acabam sendo mais baratos do que os ofertados pelos marreteiros. Curiosamente, a CPTM teve que assumir o mercado criado pelos marreteiros como forma de combatê-los. Buscou-se a repressão econômica diante do fracasso da repressão política.
Tendo diminuído o número de marreteiros, a CPTM conseguiu empregar mais eficazmente a força física como forma de repressão. Quem viaja pelos trens atualmente fica sem saber se aqueles rapazes de braços fortes, altos e postura carrancuda é um simples passageiro ou um membro da polícia secreta da CPTM. Pode-se estragar todo um domingo sendo obrigado a ver esses policiais sem uniforme espancar um marreteiro dentro do vagão e tomar os seus produtos na frente de crianças, idosos, mulheres, adultos e ainda ficarem olhando feiamente para todos como se todos fossem bandidos. Em 2008, foram 35.216 apreensões que tomaram dos marreteiros mais de um milhão de itens. Já presenciei situação em que esses guardas, na Estação da Luz, agarraram uma mulher negra pelos cabelos e a arrastaram 60 ou 70 degraus escada acima a puxando pelo couro cabeludo, assim como vi um passageiro ser esbofeteado inúmeras vezes porque se queixou do fato de seguranças estarem espancando um marreteiro na frente de todos.
Destruída a possibilidade de não pagar passagens e diminuído o número de marreteiros pode-se, então, avançar sobre todos os passageiros aumentando o controle e a fiscalização, impondo normas e proibindo determinadas práticas culturais. O aparato criado com o pretexto de lotacao-maxima1punir os que burlavam as regras passou a enquadrar a todos. É assim que vemos aumentar drasticamente a quantidade de câmeras de vigilância, algumas delas também instaladas secretamente nos trens, filmando o seu interior. Vimos a CPTM proibir a atuação de pedintes, de sambistas e até mesmo os cultos de evangélicos. Há regras ilógicas que proíbem alguém de sentar no chão, o que levou à situações em que jovens foram espancados pelo fato de, passando mal, serem obrigados a sentar no único lugar que havia para tal no momento, o chão. O autoritarismo da CPTM chegou ao ponto de proibirem a freqüência unissexual nos vagões, destinando uns para homens e outros pra mulheres e crianças, mas fracassou por insubordinação coletiva. Todas essas arbitrariedades se juntam ao submetimento hostil da população às revistas, onde são tratados como bandidos – foram 1710 blitzes somente em 2008, em que passageiros têm suas bolsas revistadas e suas mãos cheiradas, algumas vezes ao olhar de cães e sob xingamentos. Essa repressão sobre os passageiros demandou um gasto gigantesco com aparelhos e empresas de segurança que salta aos olhos quando comparados com a falta de preocupação com o bem-estar das pessoas. Mesmo afirmando ter investido 1,6 bilhões de dólares entre 1995 e 2006, estações de trem, como a de Franco da Rocha, não possuem sequer banheiro em um dos lados e bebedouros nos dois sentidos, não há unidades ambulatoriais de emergência, nem sequer materiais para primeiros socorros. Sequer foram eliminadas as lotações e o amontoamento de pessoas em padrões penitenciários de pessoa por metro quadrado: aumentou o número de trens e diminui o intervalo entre eles, mas a população transportada dobrou, saindo de 800 mil para 1,9 milhão. Erros de engenharia que durante anos têm causado acidentes com crianças que prendem as pernas em espaços vagos entre a plataforma e os trens permanecem virando décadas. Ao mesmo tempo, tem aumentado a atuação policialesca da CPTM, responsável por legislar, judiciar e executar conforme preceitos próprios que fazem seus agente secretos atuarem sem a menor consideração com a legislação e no resguardo de total impunidade.
dentro-do-tremTal como no filme Laranja Mecânica, os usuários são submetidos forçadamente a um conjunto de imagens e sons no trajeto diário. Tratam-se de imagens empresariais que a CPTM acoplou até mesmo nas catracas. Agora, além de ter o corpo esmagado pelo espaço penitenciário que é ofertado, também disciplinado pelos policiais e cães e vigiado pelas câmeras e seguranças, o usuário tem a mente invadida pelas imagens e sons que, de telões, cartazes, outdoors e televisores instalados nos trens e estações, são emitidos pela CPTM. A empresa instalou um verdadeiro regime disciplinar. Os milhões de clientes foram transformados em súditos de um regime rotineiramente árido, muitas vezes violento e absolutista em sua verve tecnocrática. Nem votos, nem nascimento, mas cursos de administração e engenharia são a caução para os terrores praticados. Num Estado em que a esmagadora maioria dos 645 municípios não possui sequer 100 mil habitantes, a CPTM governa soberana sobre uma população diária de 1,9 milhão de pessoas. Sem eleições e sem controle popular.
cao

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